Monday 13 August 2012

Olímpico

Nunca fui muito à bola com eventos feitos para as massas. Festivais de Verão, Europeus, Pavilhões Atlânticos...consigo contar pelos dedos de uma mão as vezes que me vi no meio desse tipo de situações. Talvez seja da minha fraca paciência para gente amontoada e os consecutivos comportamentos estúpidos que se verificam quando o anonimato é garantido pelos números.

Mas ontem, única e exclusivamente por questões de trabalho, fiz parte da Cerimónia de Encerramento dos Jogos Olímpicos de Londres 2012 (diz que escrito com letras maiúsculas causa mais impacto). E quando eu digo fiz parte entenda-se participei. Mas já lá vamos.

A minha equipa ia dar apoio à entrega da tocha olímpica ao Brasil. Uns bons 300 dançarinos, entre voluntários e profissionais, uns fatos e apetrechos esquisitos, muito samba, 5 minutos e estava feito. Andei a semana toda sem fazer quase nada, a comer sempre as mesmas sandes, ver ensaios em armazéns e descampados, e a pensar que ia ser uma banhada todo o tamanho. Até que num certo dia de ensaio geral, já com palco simulado e o resto da malta da cerimónia, me aparecem as Spice Girls em cima de taxis pretos. "Wow. Espera lá, que se calhar ainda vou ter umas surpresas". 
E tive. Ontem, em pleno estádio olímpico, passadas umas boas 12 horas de "standing by", decidi apanhar o elevador mais 2 colegas, explorar o estádio e ver se conseguíamos ver o espectáculo antes da nossa parte, que era muito perto do fim. Acabámos por conseguir passar segurança, ser expulsos de 2 zonas de imprensa porque não tínhamos a acreditação correspondente, mas lá arranjámos o nosso cantinho, com vista privilegiada:






Foi impossível não ficar de boca aberta várias vezes, à medida que ganhava noção da dimensão e da qualidade do espectáculo como um todo (o ensaio geral que vi eram só 2/3). Não eram tanto os nomes famosos que me surpreendiam, mas sim a grandiosidade, a capacidade de coordenar, coreografar e fazer centenas de pessoas darem uma vida mecânica mas exuberante a um espectáculo cheio de criatividade.

Mas eu estava ali era para trabalhar. 
A minha equipa, dividida entre 2 túneis de acesso, era a dos Props - Kites, que eram sem dúvida a coisa mais complicada de toda a coreografia. Chegou a nossa hora, as nossas dançarinas apareceram, os tais "kites" foram colocados em posição e elas receberam a chamada de palco. Eu, ingénuo nestas andanças dos eventos de grande escala, tinha andado a noite toda a dizer "Mas porque raio ainda não houve fogo de artifício? Tem que haver fogo de artifício!"
Parecia que me tinham ouvido:



A euforia foi quase instintiva. Tive que engolir as minhas próprias palavras críticas e admitir que foram 5 minutos muito bem conseguidos, ainda que ajudados pelo barulho das luzes e pirotecnia.
As nossas miúdas portaram-se melhor que em qualquer ensaio, fiquei orgulhoso porque sabia que os kites eram muito pouco prácticos e exigiam um esforço redobrado no momento da coreografia.
Sucesso requer celebração. E eis que alguém da equipa se vira para o nosso supervisor, o Ascanio, um italiano super fixe que na altura já era mais um amigo que chefe, e diz "Olha lá, e se nós formos todos com elas agora no fim, para cima do palco?"

E fomos. Corremos para o palco, cinco gajos em fato macaco preto no meio de 80 miúdas todas de branco, pelo meio encontrámos o resto do elenco do Brasil e passados 2 minutos estava rodeado de milhares de dançarinos das outras partes do espectáculo, com atletas olímpicos ao meu lado, a saltar e a gritar freneticamente ao som dos The Who que actuavam mesmo à nossa frente, no meio de um estádio gigantesco populado por umas boas 80 mil pessoas.




Abraços, fotos, vídeos, samba...não deu para não gritar e não sentir que estava a ter um daqueles momentos épicos que ficam para contar aos netos. 
Finalmente percebi a génese dos eventos de massas, e fiquei fascinado pela capacidade organizativa de tudo, pela forma como é um esforço verdadeiramente olímpico conseguir pensar, criar e por em prática uma festa gigantesca como a de ontem. Meios humanos e técnicos numa escala completamente esmagadora.
Vão continuar a contar-se pelos dedos de uma mão as vezes que vou participar num evento deste tipo como público, mas do lado de quem trabalha, fica sem dúvida aqui registado o meu enorme respeito.

Friday 3 August 2012

Taça de Cereais


Chego a casa de mansinho, com meia luz e gesto felino.

Tiro a roupa cansada e deixo-a deslizar para o chão, a hora já não pede atenção a detalhes, o corpo já não pede muito mais além de uma taça de cereais e o que resta da noite de sono.

Vindo da cama ouve-se um arfar gentil. Ela não nota a luz ligada aos seus pés, o que me leva a crer que se deitou "a horas decentes", desta vez.
Desisto dos cereais. Em outros tempos teria optado por eles e por tudo o resto que coubesse no tabuleiro, quem sabe até uns restos aquecidos no micro-ondas, mas hoje em dia falta-me a paciência e valorizo mais o tempo que consigo dormir enquanto a manhã não inunda o quarto de luz.

Debruço-me sobre a cama, ela continua a ignorar a minha presença, envolta num sono que eu sei profundo. Beijo-lhe gentilmente a face e recebo em troca um surpreendente meio-sorriso, esboçado de perfil, salientando a covinha no canto da boca.
A ternura desta recepção tão ingénua e o conforto dos lençóis pre-aquecidos são tudo o que preciso para declarar o dia como bem sucedido. É uma declaração silenciosa, de mim para comigo próprio, sou afinal o único juiz possível de tal afirmação, passei dois terços do dia sozinho, mas foi a noite e o regresso a casa que ditaram a sentença.
Barriga vazia, coração cheio.