Noites boémias. O
som das guitarras embala os corpos. Uma voz suave, despretensiosa, navega
através da sala. As palavras cantadas trazem memórias distantes, algumas boas,
algumas más. Murmuram-se melodias entre trocas de olhares cúmplices, solidários
até, com os menos talentosos. Palmas juntam-se para dar ritmo ao som, mais ou
menos encompassadas. Sorrisos nascem como velas acesas em todos os cantos da
sala.
Todos sabemos de
cor quais são as memórias, apesar das vivências serem diferentes.
Nunca havíamos
estado juntos antes daquela noite. Nunca voltaríamos a estar.
Cruzámos olhares
entre notas de uma guitarra mal tocada. O riso foi instintivo. O atabalhoado
desfilar das cordas quase estragara a nossa parte favorita da música.
Não trocámos uma
única palavra toda a noite. Não era preciso. A cumplicidade nascia a cada
argumento apresentado pelo trovador, pois cada uma das suas cantigas era um
ponto no mapa, uma cicatriz no corpo, uma lágrima já seca pelo tempo, esse
demolidor de sonhos.
A cumplicidade
deu lugar a ternura, comecei a prestar atenção aos detalhes. Foram as sardas
que me cativaram o olhar, mas foi o dela que me confirmou a sensação de deja vu.
A melancolia é
muito má a jogar às escondidas, aparece sempre espelhada no rosto dos que a
trazem consigo. O deja vu por sua vez
tem alcance curto, nunca vai muito longe, a razão e a lógica apanham-no por
instinto. Mas deixa-nos sempre a magicar, que nem Houdini libertado das
correntes.
As sardas
pertenciam desta vez a uma face nórdica e um corpo espadaúdo mas ao mesmo tempo
esguio. O cabelo era loiro de natureza mas curtinho, mais curto que o meu. A
melancolia não trazia rótulo, não dava para perceber se era do momento ou de
natureza.
Apenas a
observei, absorvida no seu mundo, incógnita no meio do grupo, tímida na hora de
soltar as letras das canções que sabia de cor.
A todas as estrelas
chega a hora de brilhar. A dela chegou tardia. A face iluminou-se por momentos,
o corpo levantou-se da cadeira. Tiradas as medidas da planta dos pés à ponta
mais alta do cabelo, seria com certeza a rapariga mais alta que havia visto em
muito tempo.
Quando tomou o
banco e pegou na viola, a sua companheira de estrada voltou até si. Cabisbaixa,
a vergonha, apesar de existente, escondia a verdadeira razão da melancolia ser parte
de si. Mas a vergonha é sempre a primeira a saltar quando o navio já está a ir
ao fundo, e a viola surte o efeito de trazer ao convés até os sentimentos mais
escondidos.
Cantou e tocou uma
das músicas mais amarguradas e mais belas que alguma vez tinha ouvido. A sua voz
era frágil, desconcertante, exposta…puxava pela raiz de tudo aquilo que todos nós
tentamos afundar. Todas as memórias, os pontos no mapa, as cicatrizes e as lágrimas
estavam ali, em forma de som.
Quando o silêncio
se apoderou do espaço que ficara após o fim da canção, um bravo ou tolo pediu-lhe para
partilhar algo mais alegre.
“Só conheço músicas
tristes”.
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