Estou "preso" num comboio que atropelou alguém há uma hora atrás. A pessoa em questão morreu.
A primeira reacção das pessoas à minha volta foi ficarem muito indignadas. Porque já não é a primeira vez, porque vai demorar, porque ninguém comunica com os passageiros, porque o delegado de saúde não aparece, porque...
Mas que raio. Alguém acabou de perder a vida, muito provavelmente num acto de suicídio, e toda a gente só pensa nos seus narizes. Eu permaneço indiferente, calado, a ler quando os olhos não me pesam demasiado. Não obstante, pensativo e atento.
Um senhor dois assentos à minha frente veio do estrangeiro hoje de manhã para enterrar o pai. Lamenta-se do autocarro que perdeu logo de manhã para chegar ao aeroporto, de como teve que pagar taxi, de como não haviam voos disponíveis para o Porto e teve que voar para Lisboa e acabar neste comboio...pouca sorte, diria.
Pessoas vão abandonando o comboio, impacientes com a situação ou com outros afazeres que não lhes permitem esperar mais. Vão-nos chegando detalhes do acidente, toda a gente acaba por ficar tranquilizada quando o revisor anuncia que iremos retomar a marcha nos próximos cinco minutos. O tom pesado esmorece. Faz-se conversa de circunstância, pessoas contam histórias de outras peripécias semelhantes. Percebo que se criou ali uma empatia instintiva entre todos, um fenómeno social fácil de perceber e já bastante estudado no circuito académico. Passado uns minutos já ninguém fala de morte, de acidentes ou de atrasos. Tudo o que importa é que o comboio, tal como a vida, continua a marcha.
Na chegada à estação terminal, levanto-me e olho à minha volta. Dos poucos restantes, apercebo-me que fui o único que nunca chegou a proferir uma única palavra. Percebo tal facto porque toda a gente me olha de forma estranha, como que a tentar descortinar-me, perceber qual a razão do meu silêncio, o porquê de não ter participado da amena cavaqueira.
Pouca sorte, diria.
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