Tuesday, 8 October 2013

Opacidade

Lá fora cai a chuva mais ensurdecedora que já senti na vida.
É como se estivessem a demolir todos os prédios e casas e telhados e pedaços de alcatrão à minha volta, mil trabalhadores com martelos e picaretas, tão intensos que dou por mim a pensar se não está a chover cá dentro, mesmo em cima de mim.
Apenas a oiço, no entanto. As cortinas cumprem o seu multifacetado propósito: opacidade.

Já não a vejo há quase cinco meses. É tão estranho pensar nisso, tão complicado tentar agarrar a última memória, naquele telhado que nunca teria existido, aquele abraço que nunca faria sentido, não estivesse eu aqui agora. Eu e os martelos e as picaretas e os bocados de alcatrão que se levantam e roem e remoem, e as paredes que calam e consentem e as cortinas, opacas.
Tento visualizar. O sorriso, o verdadeiro, já está tão esbatido que mal o consigo ir buscar. Merda, estragámos a pintura mesmo a sério.
Visualizo em jeito de compensação os momentos, mas os detalhes voam pela janela. Malditas cortinas, só se privam daquilo que lhes convém.

E não vale a pena meter as culpas no tempo, ou no facto de que vivi mais nestes quase cinco meses do que provavelmente em toda a minha vida até agora, porque se as paredes falassem, as cortinas mostrassem e o raio da chuva deixasse de afogar os meus sentidos, tudo o que se ia revelar era silêncio, porque não estás aqui.

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